11 dezembro 2022

VIVÊNCIAS DA TROPA

 

VIVÊNCIAS DA TROPA




Faz neste domingo, 11 de Dezembro de 2022, 49 anos que embarquei no Aeroporto Militar de Figo Maduro, rumo a Angola, juntamente com os meus camaradas que faziam parte do PAD 9789.

Aquelas minutos que o antecederam foram um autêntico desterro com abraços e beijos acompanhados de lágrimas como se fossem os últimos das nossas vidas, debaixo de uma chuva miudinha.




Como o avião da Força Aérea, levantou voo perto da meia-noite, oito horas depois estávamos em Angola debaixo de um calor intenso. Fomos transportados em camiões Berliet Tramagal, para o campo Militar do Grafanil, onde logo à entrada deparamos com um nicho dedicado à Nossa Senhora de Fátima, esculpido num imbondeiro.

No dia seguinte, todos perfilados fomos vacinados contra a doença do sono, transmitida pela mosca tsé-tsé. A partir deste dia um pequeno barulho era o suficiente para me acordar, eu que dormia em qualquer sítio como uma pedra.




Passados dias lá fomos até ao planalto de Huambo, à cidade de Nova Lisboa, onde nos esperavam em festa os que íamos render. Se para uns era alegria, para nós era o mergulhar no desconhecido mundo da guerra.




Depois veio o 25 de Abril e a nível de metralha as coisas pioraram e muito. Todos os Movimentos de Libertação aquartelaram-se nas cidades, não como partidos políticos, mas como exércitos armados. A partir daqui começou o caos, que veio a culminar numa guerra civil, enquanto os portugueses encaixotavam alguns haveres para enviarem para a metrópole, ao mesmo tempo que se raspavam para Portugal, e assim acabou a Guerra Colonial no dia de S. Martinho no ano de 1975.


Fachada principal do RI 5 nas Caldas da Rainha


Mas se todas estas vivências são da parte final do meu Serviço Militar Obrigatório, quando assentei praça no Regimento de Infantaria N.º 5, nas Caldas da Rainha, conheci o Teixeira, que era muito mais vivido pois foi desertor e quando regressou a Portugal à socapa, foi preso e obrigado a ir para a tropa. Nunca me vou esquecer das partidas que ele pregava a alguns camaradas ou de quando se fazia de parvo gozando com a situação. Aqui vou retratar algumas peripécias suas.


Casernas do lado esquerdo no interior do quartel


Chegados ao aquartelamento, logo somos encaminhados à respectiva caserna. É neste preciso momento que conheço pela primeira vez, o Teixeira de Lamego. Enquanto os alfacinhas se exibem como chicos espertos, e os tripeiros como malandros de urinol, o amigo Teixeira é o bobo do 3º pelotão. Até no vocabulário se começa a distinguir a malta do Norte da do Sul. Se os nortenhos põem aloquetes nos armários, já os sulistas usam cadeados, assim como dizem as horas à inglesa ou seja, faltam dez para as duas, os do norte falam em duas menos dez, e como isto não chegasse, na cantina uns pedem bicas e outros cimbalinos. No entanto o camarada que serve ao balcão já decifra toda esta linguagem e serve a ambos um café.

Ao passarmos pela arrecadação da companhia, um cobertor é aberto no chão e para ele são lançadas: meias, cuecas, toalhas, lenços, calções, camisas, camisolas, calças, cinto, casacos, gabardina, sapatilhas, divisas e botas. No final, faz-se uma trouxa, e marcha-se para a caserna onde vamos escolher a cama, e o armário onde vamos guardar as nossas coisas. A primeira preocupação é ver se as botas nos servem, já que quanto ao fardamento há sempre alguém na terra que sabe dar um jeito. Aqueles cujo número das botas não dá com o que o seu pé gasta, tentam trocar entre si a fim de resolverem a situação.




O Teixeira é que não esteve pelos ajustes e foi direitinho à arrecadação para lhe efectuarem a respectiva troca.

- O senhor faz favor troca-me estas botas por umas número 42?

- Ó pá!... O senhor está no céu. Aqui é ao nosso cabo, sabes! Desenrasca-te! A tropa manda desenrascar.

O nosso amigo é que não gostou nada da resposta e foi-se sentar na soleira da porta da caserna da companhia.

- O que fazes tu aí pá?

O Teixeira levantou-se calmamente com as botas na mão e falou olhos nos olhos:

- Tu que és mais velhinho do que eu nestas andanças, vê se me arranjas umas botas que me sirvam.

- Segue-me!... O capitão ordenou ao cabo da arrecadação a troca das mesmas.

Vimos que o Teixeira, além de não ter medo tinha levado de vencida o cabo chico da arrecadação.




Depois das botas foi a vez do fardamento. Quem se fardava ia dar uma olhadela ao espelho, para ver o ridículo em que se encontrava. A divisa de instruendo que era toda verde com uma lista diagonal vermelha, e que ninguém sabia se era enfiada na presilha do ombro direito ou esquerdo. Quando nos encontrávamos nesta dúvida, eis que entra o aspirante que nos havia de dar a recruta e nos dá a solução para o caso. Foi então que o Teixeira com aquele ar de saloio, mas mais fino do que aqueles que se julgavam sê-lo, vai direito ao aspirante e enfia-lhe o dedo no seu galão todo preto com uma lista diagonal dourada, ao mesmo tempo que lhe pergunta:

- Oh pá!... Isto são eles que dão ou é a gente que compra?

O aspirante desmanchou-se a rir da ingenuidade do Teixeira.

- Ó meu, então não vês pá, que isto é de oficial?

O Teixeira encolheu os ombros e desanda perante a galhofa geral.

Aqui, é que me apercebi que o Teixeira brincava com eles todos e não o contrário.

 


Interior da caserna com camas no r/c e 1.º andar


Mas a melhor ainda vos vou contar agora. Na cama que fica por baixo do Teixeira ficava o Jorge que era um esquisito dos diabos. Para ele tudo cheirava mal e tinha o hábito de cheirar até a comida no refeitório.

Certa noite, ao regressar da saída nocturna para o quartel, verificou que o Jorge dormia como uma pedra. Foi à casa de banho fazer as suas necessidades e no final trazia um pouco de excremento preso na ponta de um palito, o qual foi depositar no bigode farfalhudo do Jorge sem que este desse por isso. De manhã, mal o cornetim tocou a alvorada, toda a caserna se levantou como uma mola.

- Oh Teixeira!?... Cheira-me a merda que tolhe.

- Engraçado. A mim não me cheira a nada.

De repente, toda a caserna sabe do que se está a passar, excepto o Jorge. Só quando ele vai lavar a cara é que se apercebe do sucedido.

- Foi o cabrão do Teixeira.


É por estas e por outras, que há quem diga que a tropa tem o condão de pôr os tolos finos, e os finos tolos.


Evidentemente que na tropa nem tudo é mau, até porque se criam novas amizades, mas, para aqueles que ainda não puseram os cotos nela, vou-os alertar com duas frases que vão ouvir repetidas vezes durante a instrução. A primeira diz respeito quando a mesma é dada debaixo de chuva,


Chuva civil não molha militar”


e a segunda atesta a qualidade do Serviço Militar Obrigatório, que hoje é voluntário.


" Na tropa só há duas coisa más, a farda e o resto".


Agora!... Desenrascai-vos!


Fernando José de Oliveira

Dedico este texto à malta do PAD 9789


01 dezembro 2022

A FOME

A FOME

 


Há dias vi o maior turista português, que habita num palácio para os lados de Belém, na capital da fome, muito preocupado com os famintos que por aí andam, ao ponto, vejam bem, de roubarem latas de atum nos supermercados, esses mesmos que ganham rios de dinheiro com essa desgraça nacional, que o diga o facturamento no dia em que o Banco Alimentar se instala ás portas dos mesmos.

 


 

Portugal sempre foi um país de um povo pobre, tanto de espírito como do vil metal, vivendo de mão estendida da pedincha nacional como na internacional como é o caso dos subsídios da UE.

 


 

Acreditei que com o 25 de Abril iríamos eliminar a pobreza do antigamente, mas não, apenas mudamos alguns rótulos para aliviar consciências e nada mais.

Se dantes tínhamos a sopa dos pobres, hoje temos o Banco Alimentar. Já repararam que até os pobres também têm o seu banco, como se de banqueiros se tratassem. Por acaso até têm uma certa parecença, pois volta e meia, tanto uns como outros aparecem tesos que nem uns virotes. Por isso podemos dizer que somos um povo engravatado sem solas nos sapatos.

 


 

Vou recuar no tempo até aos finais dos anos 30 do século passado, com a Guerra Civil Espanhola (1936/1939), em que a conhecida amizade de Franco e Salazar motivou deste último um claro apoio ao país vizinho, apoio esse que se prolongou para além do conflito, e já em plena Guerra Mundial.

Em direcção a Espanha, passavam comboios cujos vagões ostentavam grandes tarjas de pano dizendo: 

SOBRAS de PORTUGAL

Entretanto, o nosso povo sofria grande miséria!

Com o “racionamento”, todos os bens de consumo passaram a ser regulamentados por um sistema que atribuía a cada pessoa uma caderneta com senhas destacáveis onde eram indicados os produtos passíveis de obtenção. Eram quantidades ridículas e isso motivou o aparecimento de um mercado paralelo, clandestino, a “candonga”, com preços altamente inflacionados. Quem tinha dinheiro, comia. Quem não tinha, minguava à fome.

A “candonga” encheu muitos bolsos de traficantes sem escrúpulos.

Tudo servia para traficar, desde o azeite ao arroz. O milho, nesse tempo de importância primordial, conseguia-se clandestinamente a peso de ouro e com grande risco de quem o vendia.

 


 

Muitos para fazerem face à carestia de vida, recorriam ás casas de penhores, colocando coisas de valor no “prego”, tentando, entretanto, arranjar dinheiro para mais tarde a ir resgatar.

 

 


Pelo que li, a procura destas casas de penhores está novamente a aumentar. Quando uma família está mesmo de rastos, ao nível do chão, é quando coloca no prego as alianças do casamento, porque esses anéis por questão de ética familiar, são as últimas joias a penhorar.   

 


 

Nesses tempos aos sábados era notório a quantidade de pobres que percorriam as ruas da cidade de Penafiel, a pedir esmola. 

 

 


Na freguesia de Croca, concelho de Penafiel, em 2 de Janeiro de 1940, o seu regedor elabora a lista de pobres existente na freguesia, os quais passo a citar: Destes, apenas Ana de Jesus, doméstica vivia da mendicidade.

Lavradores – Adão Pinto; Vitorino da Silva; Adelino Teixeira; Agostinho Rebelo Ribeiro; António Moreira; António Moreira; António Nunes; António Ribeiro; António da Rocha; António Rebelo Ribeiro; António da Silva; António de Sousa; Francisco Ribeiro; Francisco Mendes Coelho; Joaquim Pinto; Joaquim de Souza; Joaquim Vieira Ferreira; Joaquim Brochado Cardoso; António Brochado; José Luiz e José Ribeiro da Cunha;

 

Doméstica – Adelaide de Jesus; Ana Emília dos Reis; Ana de Jesus; Ana de Oliveira; Ana de Sousa Magalhães; Emília de Jesus; Emília Rosa Ferreira; Francisca de Jesus; Ana Pereira; Gracinda de Jesus; Maria de Jesus e Felicidade Rosa;

Jornaleiro – Albano Nunes; António Ferreira; António Ferreira Alves; António Gomes; António José de Brito; António Luiz; António Maria Alves; António Pereira; António Pinto Santana; António Rebelo de Campos; António Teixeira; Aurélio Coelho; Constantino Alves Pinto; Constantino da Silva; Daniel do Couto; Eduardo Moreira; Firmino Pinto; João Pinto; João Teixeira; João Monteiro; Joaquim António Mendes; Joaquim Ferreira; Joaquim Ferreira Alves; Joaquim Ferreira Camilo; Joaquim de Matos; Joaquim Rebelo de Campos; Joaquim Ribeiro; Joaquim de Souza; Joaquim Teixeira; Joaquim de Campos; José Pereira; José Rebelo da Silva e José Soares Mendes.

 

Alfaiate – Joaquim Moreira;

Carpinteiro – António Joaquim Mendes e António Nunes de Souza.

Criveiro – Cristóvão Cardozo.

Sapateiro – Cândido de Souza Aguiar e Joaquim Vieira.

Galinheiro – Jaime Ribeiro; Joaquim Coelho de Almeida; Joaquim da Cunha e José Ferreira.

Ferreiro – Joaquim Pinto Santana;

Cesteiro – Agostinho de Brito; Joaquim Barbosa;

Trolha – Adão Ferreira; António Teixeira e José Teixeira.  

Pedreiro – António Barbosa Rebelo Moreira; António Mendes; António da Silva; Serviçal – Maria Isabel de Jesus

 


 

Com a guerra na Ucrânia, lá fomos nós carregados de alimentos, roupas e até conseguimos alojamento para esses refugiados no nosso país. Até aqui tudo bem. Mas é preciso também olhar pelo espelho retrovisor da vida, e vermos o que se passa à nossa rectaguarda, para não deixar para trás os nossos que caíram na pobreza, com abrigo ou sem abrigo.

 


 

Reuniu com toda a pompa e circunstância o Conselho de Estado, com todos os seus membros de barriga cheia a arrotarem “postas de pescada” sobre a fome. Os indigentes continuaram a dormir nas ruas tapados com cartão, e nem sequer deram por tal reunião que falava do seu drama e no final nem sequer foram capazes de transformar um quartel em dormitório para esta gente que padece ao frio do Inverno que se aproxima e à fome.

 


 

É este postal ilustrado da fome, que é preciso erradicar deste país, que continua a ser bom para turistas e “acólitos” dos partidos que estão no poder, e que ontem como hoje, continua a empurrar gerações e gerações dos seus filhos para a emigração para fugirem à mesma.

- Até quando vamos brincar à caridadezinha?

Já vai sendo tempo de deixarmos de brincar com estas coisas, pois caso contrário, não há alarme que segure as latas de atum ou o polvo nas prateleiras dos supermercados ou na mercearia de rua mais próxima, pois como diz o nosso povo, a fome é negra.

 


 

Como estamos no mês do Natal, não podia deixar de desejar a todos que por aqui passam, um Santo e Feliz Natal, com mais ou menos luzinhas de esperança a piscarem nas nossas consciências, para que estas coisas melhorem.

Pois como escreveu António Gedeão, “o sonho comanda a vida”.

- Boas Festas!

 

Fernando Oliveira – Furriel de Junho