20 junho 2020

O POSTAL

O POSTAL



Mal rompe o dia, o barulho das camionetas invade a cidade.

Da carreira vinda do lado da Ribeira, que estacionou na paragem perto do município, saiu um homem com ar de macambúzio, e veio numa passada lenta passeio fora em minha direcção.


- Bom dia! (fazendo uma pequena vénia).

Retorqui o cumprimento à moda covidiana, ou seja com uma cotovelada. 

Por entre a máscara lá me perguntou:

- O senhor sabe-me informar onde me devo dirigir?


Li o postal e indiquei-lhe o melhor caminho para lá chegar.

- Sabe, quem costuma tratar desta papelada é o meu filho, mas quê, ele agora emigrou para a Alemanha, e eu que não sei ler uma letra do tamanho de um camião, tenho que meter os pés ao caminho.

O nosso homem lá foi colocar-se na cauda da fila que já era longa, mantendo a distância física, à porta da repartição.


Ás nove horas em ponto o contínuo escancarou a porta da entrada. As pessoas entraram e subiram a escadaria que as levou ao primeiro andar formando novamente a fila à boca do guichet de atendimento.

Bastava olhar para a cara dela, para ver que a funcionária vinha mal disposta, falando num tom agressivo. Se a cabeça da fila ia diminuindo a cauda por sua vez ia engrossando.

Quando chegou a minha vez de ser atendido, a nossa amiga virou costas e desapareceu.
- Pois é! Foi tomar café e quando veio esteve mais de um quarto de hora a palrar com duas colegas, e a malta toda à espera que sua excelência se dignasse vir-nos atender.

- Enfim...


Comecei a ficar bravo como só o mar quando rebenta nos rochedos a sua fúria.

A malta começou toda a protestar e como eu não sou nenhum santo tive que explodir:

- Isto é uma grandessíssima pouca vergonha! Ao mesmo tempo que tilintava com uma moeda no patamar do guichet.

- Ó minha senhora, então ninguém vem atender?


A confraria dos mangas de alpaca entrincheirada em resmas de papéis, apenas olhou de soslaio e continuou pávida e serena como até ali.

- Quem é o chefe disto que eu vou já falar com ele? Isto não pode ser!

Um funcionário dirigiu-se calmamente ao guichet.

- O senhor não vê que está a perturbar quem trabalha!

- Se estou a atrapalhar o trabalho a culpa é dos senhores, se não já me tinham vindo atender.

- Vamos lá e baixe a voz que eu ouço bem, e tenho mais que fazer.

- Bem, passe para cá o bilhete-postal.


Lá foi com o papel na mão para a secretária. Aí reuniram os mangas de alpaca. Todos murmuravam, encolhiam os ombros e gesticulavam. Por fim, um homem aparentando uns cinquenta e muitos anos surgiu diante da minha pessoa, com o postal na mão, limpando vagarosamente os óculos.

- O senhor é que é o Etelvino da Costa?

- Sim senhor.

- Você ainda o mês passado cá esteve a requerer uma licença para obras, mas acontece que lhe falta preencher uma simples coisa mas sem isso como deve compreender o seu requerimento não podia seguir os trâmites legais.

- Nós precisamos de saber, qual é a sua naturalidade?


Etelvino soltou uma gargalhada deixando ver, a sua falta de dentes.

- Essa é boa! Aonde havia de ser, senão na minha terra.


Ao descer a escadaria que o levava novamente à rua trauteava baixinho algo mais ou menos parecido com isto:

Se toda a cera que vemos
Se pudesse transformar
Certos locais de trabalho
Seriam mais um altar 

- Então está tudo resolvido?

- Até ver!... - Até ver!...

Nota:
Caro(a) Leitor(a)
Qualquer semelhança com a realidade, é pura coincidência.

Fernando Oliveira – Furriel de Junho

10 junho 2020

QUANDO A TROPA DAVA VIDA À CIDADE

QUANDO A TROPA
DAVA VIDA À CIDADE



Milhares de homens passaram pelo quartel militar de Penafiel.

Não só davam vida à cidade como interagiam com ela.

Para além da instrução militar que lhes era dada, desenvolviam paralelamente outras actividades culturais.


Em tempos que já lá vão, mal vinha o Verão, nas tardes de domingo davam concertos musicais no coreto construído no jardim público Egas Moniz, aos penafidelenses.

Também criaram uma companhia de teatro que baptizaram de “Marte”, para a qual foram recrutadas algumas meninas na urbe para o elenco, pois nessa altura a tropa era só para homens.

O Sport Club de Penafiel, também teve colaboração musical a quando da formação da sua Orquestra Jazz Albardófila de alguns militares músicos.

Muitas donzelas casaram com militares que por aí passaram, e no tempo em que os batalhões partiam e regressavam da Guerra Colonial muitas meninas eram convidadas a serem madrinhas de guerra.

Jorge Sena, escritor português, passou também por cá em 1941, retratando a sua passagem por este quartel no seu livro “Os Grão-Capitães”, no capítulo “ As Ites e o Regulamento”.

O 2.º Comandante do CICA 1, Tenente Coronel Olavo Rocha, elaborou a História do Quartel de Penafiel, que publicou em crónicas na revista do próprio quartel “O Calhambeque”. 

 

Para a miudagem da época, que hoje deve rondar os 70 anos de idade, era uma alegria ver a Fanfarra que todas as quintas-feiras percorria as ruas da cidade até à Praça Municipal, onde tocava virada para o Monumento ao Mortos da Grande Guerra, regressando de seguida ao quartel.

Sendo Maio, por excelência o mês das Novenas a Maria, devido à primeira aparição da Virgem em Fátima aos pastorinhos, se ter dado a 13 de Maio.

Até nestas coisas os militares faziam questão de participar e colaborar com a cidade de Penafiel.



Estávamos no ano de 1956, e na Igreja do Calvário, junto ao altar de Nossa Senhora da Conceição, durante o mês de Maio decorriam as novenas de Maria, que tinham o condão de atrair muitos fiéis.

As novenas eram presididas pelo Padre Superior Reverendo Nascimento Fontes, auxiliado por Frei José Martinho e Frei Manuel Guimarães.



Abrilhantavam estas cerimónias religiosas, ao órgão a Sr.ª Dona Otília Mendes Leal e um grupo coral formado por elementos do Regimento de Artilharia Ligeira N.º 5 (R.A.L. 5), orientados pelo padre Franciscano, Reverendo Polidório de Oliveira.

O grupo de militares vindos do RAL 5, que fizeram parte do coro que animavam com a perfeita afinação das suas vozes estas novenas, e que eram alvo dos maiores elogios eram os seguintes:



Manuel Silva, Luís de Sousa, Júlio Alexandre Alves Ferreira, Constantino Costeira, Gonçalo Amorim Varejão, José Fernandes, Joaquim Alberto de Oliveira de Sousa, Júlio Gomes de Sousa Varejão, José Faria Tenedorio, Manuel João P. da Silva, Emílio Pereira, Manuel Moreira Pinto, José P. Araújo, Manuel José Sérgio, Nestor Rio Tinto Costa, Joaquim de Matos Alves, Albino Lourenço Fernandes, Luís Barros Esteves, Domingos Dias Meira, Jorge Fernandes de Sousa, António Rodrigues da Fonseca, José Loureiro Pinto, Manuel Marinho, António S. Ribeiro, Arménio Gouveia e António Lopes das Neves, soldado do RAL 5 que prendia a atenção de todos durante os seus solos, tão apreciados pela assistência.

E pronto, aqui fica relatada mais uma intervenção dos militares na vida desta cidade, que muitos penafidelenses por certo desconheciam.

Hoje, nas velhas calçadas da cidade de Penafiel, já não vemos “magalas”, mas pavoneia-se outra “tropa”, que apenas trata da sua vidinha, destruindo por vezes o nosso passado, desrespeitando os nossos melhores filhos que deram a vida pela pátria, e ainda nos dizem com aquele ar de entendidos, que tudo isto é feito em prol de um tal progresso... do deles é claro.

Fernando Oliveira – Furriel de Junho

01 junho 2020

LOAS

LOAS
NOSSA SENHORA DA SAÚDE
 


No meio do verde de montes e campos, lá está imponente o mosteiro e o convento Beneditino. Já lá vão os tempos em que os cânticos gregorianos dos monges faziam eco nas penedias.

Se o patrono é S. Miguel o que lhe dá fama, é sem dúvida a Nossa Senhora da Saúde.


Segunda-feira a seguir ao Domingo de Páscoa a cidade de Penafiel, fecha as suas portas e lá vai com o seu farnel, muita das vezes feito das sobras do dia anterior rumo a Bustelo.

O que hoje se faz geralmente de carro, em tempos que já lá vão, as camionetas da firma Alberto Pinto num vai bem constante lá iam transportando pessoal de Penafiel, para a festa da Senhora da Saúde em Bustelo.


Os pagadores de promessas fazem este percurso a pé. É nesta condição que aparecem as novenas. São pessoas em número de cinco, sete ou nove entrelaçadas umas ás outras pelos braços, entoando loas à Senhora da Saúde, enquanto caminham.

Com o aparecimento da televisão, não só cada vez se vê menos novenas, pois é mais fácil ver uma telenovela do que transmitir esta cultura popular como era apanágio nos velhos serãos, de geração a geração.

Hoje tanto a cidade como a aldeia mais remota estão a ser standarizada e absorvida pelos meios de “progresso”, que pouco preserva de seu, culturalmente falando.

A última novena que vi, já lá vão mais de trinta anos, era formada por moças da freguesia de Duas Igrejas, do concelho de Penafiel.

Eis alguns versos cantados por elas:

Nossa Senhora da Saúde
Livrai os homens da guerra (bis)
Nós somos de Duas Igrejas
Viva, viva a nossa terra (bis)

Nossa Senhora da Saúde
Vota fitas a voar (bis)
Vota uma, vota duas
Todas vão cair ao mar (bis)

Nossa Senhora da Saúde
Nós já fomos e viemos (bis)
Vimos vos pedir perdão
Dos pecados que fizemos (bis)

Nossa Senhora da Saúde
As costas vos vou virar (bis)
Dai-me vida e saúde
Para o ano cá voltar (bis)

Nossa Senhora da Saúde
Nós cá estamos a chegar (bis)
Deite o arroz p'rá caçarola
Sopa seca pró alguidar

Nossa Senhora da Saúde
Eu pró ano lá hei-de ir (bis)
Ou casada ou solteira
Ou criada de servir (bis)



Foi esta última quadra que me chamou atenção, pois ouvi-a na Galiza apenas modificando o 1.º verso ficando assim:

Orense que és da raia”
Eu pró ano lá hei-de ir (bis)
Ou casada ou solteira
Ou criada de servir (bis)

Daí ter concluído que o povo acomoda a letra a qualquer santo ou santinha ou terra que vão visitar.

- Será que estes cânticos foram trazidos pelos romanos no período da romanização até nós?

Mas outra hipótese se me levanta na mente se não seriam os peregrinos que calcorreando os Caminhos de Santiago até Compostela os foram transmitindo de pais para filhos a netos até aos nossos dias.

Destas maneiras ou de outras, é caso para dizer:

Se todos os caminhos vão dar a Roma ou a Santiago, também não é menos verdade, que todos os caminhos vão dar à nossa terra, assim como estas Loas.


Fernando Oliveira – Furriel de Julho