DO NATAL ATÉ AOS REIS
(A NOSSA GENTE)
Sou do tempo em que a figura principal do Natal era sem dúvida o Menino Jesus, e não como nos tempos que correm neste reino consumista em que por todo o lado se apregoa o Pai Natal.
Por vezes ainda estávamos a meio da Ceia de Natal, com as batatas, a penca e o bacalhau a fumegarem no prato, já os das Janeiras cantavam à porta.
As Janeiras eram cantadas do Natal até aos Reis. Eram miúdos dos bairros pobres, geralmente acompanhados ao som dos ferrinhos, pandeireta e um bombo de papelão, com o fito de arranjarem algum dinheiro para guloseimas.
Um do grupo, era o do saco que ia arrecadando as massas que no final repartiam por todos.
Na noite da consoada os cânticos anunciam o nascimento do Deus Menino em Belém. Ainda hoje me lembro de algumas quadras as quais passo a retratar:
Vimos dar as Boas Festas / Com prazer e alegria / Já nasceu o Deus Menino / Filho da Virgem Maria.
Vamos toda minha gente / Aqui não fica ninguém / Vamos adorar a Virgem / E o Deus Menino, em Belém.
Dorme, dorme meu Menino / Que a tua mãe logo vem / Foi lavar os teus paninhos / À fontinha de Belém.
Vamos todos ao presépio / Vamos todos a Belém / Visitar o Deus Menino / Que a Nossa Senhora tem.
Alegrem-se os Céus e a Terra / Cantemos com alegria / Já nasceu o Deus Menino / Filho da Virgem Maria.
Na missa das onze rezada pelo Sr. Reitor na igreja da Misericórdia, ainda recordo os versos que lá cantávamos, enquanto o Menino era dado a beijar.
Vinde, vinde já ó almas / adorar o Deus Menino / Despido de amor profano / E cheio de amor divino.
Vinde, vereis na lapinha / Sobre palhas encostado / Aquele Deus nas alturas / Por nosso amor humanado.
Vinde já, vinde com pressa / Há lapinha de Belém / P’ra ver como Deus Menino / Nasceu para nosso bem.
Oh! Quem se não admira / De ver tão grande humildade / Vir unir-se ao nosso barro / A Divina majestade.
Lançai-me meu Deus Menino / A vossa bênção sagrada / E peço-vos que a minh’alma / Seja só vossa morada.
Entre cada quadra entoávamos o refrão: Corramos depressa / Nós míseros mortais / Cantar ao Menino / Bendito sejais.
Na passagem do Ano, vêm as Janeiras propriamente ditas que lançam loas aos da casa, e que geralmente começavam assim:
Ainda agora aqui cheguei / Mal pus o pé na escada / Logo o meu coração disse: / Aqui mora gente honrada.
Ó senhor dono da casa / Seu raminho de bem-querer / Se a sua adega tem vinho / Venha-nos dar de beber.
Quem diremos nós que viva / Na pontinha do lençol / Viva a menina Ana / Que é bonita como o sol.
Viva lá o senhor Ricardo / Vestidinho de veludo / Quando mete a mão ao bolso / Seu dinheiro paga tudo.
Viva lá a menina Rosa / Corada como a cereja / É a menina mais bonita / Que entra na nossa igreja.
Quem diremos nós que viva / Eu não quero ficar mal / Viva um e vivam dois / Vivam todos em geral.
As Janeiras terminavam com esta quadra que reza o seguinte:
Venha, venha se há-de vir / Não se esteja a demorar / Nós somos de muito longe / Temos muito para andar.
Se no final da cantata das Janeiras surgia à porta alguém da casa para dar alguma recompensa, os cantadores cantavam:
Aqui mora alguma santa / Pois nos deu as janeirinhas / Tantos anos ela conte / Como a casa de pedrinhas ou Deitemos-lhe a despedida / Por cima do laranjal / Viva o dono desta casa / Vivam todos em geral.
Se por outro lado, ninguém dá nada aos cantadores, estes rematam:
Esta casa cheira a unto / Aqui mora algum defunto / Esta casa cheira a breu / Aqui mora algum judeu.
Esta quadra festiva que se inicia no Natal, vem a terminar no dia de Reis ou seja a 6 de Janeiro.
Na véspera cantam-se os Reis, que é o retratar em versos a caminhada destes ao encontro do Deus Menino deitado nas palhinhas numa gruta em Belém.
Nobre casa, nobre gente / sentireis e ouvireis / que, da parte do Oriente / são chegados os três reis.
Foram-se a casa de Herodes / por ser o maior do reinado / que l’ensinasse o caminho/ pois que Jesus era nado.
Herodes, como malvado / como perverso maligno / às avessas ensinou / aos santos reis o caminho.
E estando Deus nas alturas / viu tamanho desatino / que mandou uma estrelinha / que l’ensinasse o caminho.
Os três reis do Oriente / já vão postos a caminho / Guiados por uma estrela / Pr’adorar o Deus Menino.
A cabana era pequena / Não cabiam todos três / Vão adorar o Menino / Cada um por sua vez.
Pastores, pastores / Vinde todos a Belém / A adorar o Deus Menino / Que Nossa senhora tem.
Não sei porquê nem porque não, o meu pai acrescentava na reinação este percurso aos três reis que era o seguinte:
Os três reis do Oriente / Já passaram em Barcelos / Um descalço outro calçado / E o rei preto de chinelos.
Depois do dia de Reis, era o desfazer do presépio e da árvore de Natal, e tudo era encaixotado e guardado religiosamente até ao próximo Natal.
Aqui na terra, para manter a tradição (segundo dizem os sabichões da cultura), assistimos a tudo quanto é Rancho Folclórico ou Associação não sei de quê, a cantarem as Janeiras quase até ao Carnaval.
Por mais vozes afinadas que tragam, por mais instrumental que toquem, serão sempre cantadas fora do prazo de validade e por mais roupagem e ingredientes que apresentem, nunca terão o paladar de antigamente, mas o sabor a frete, à caça de um cheque com algum numerário.