09 agosto 2018

DEUS MARTE DO SANTUÁRIO AO MUSEU

DEUS MARTE
DO SANTUÁRIO AO MUSEU



No início do século passado, a quando se procedia à abertura dos alicerces, para a construção do Santuário de Nossa Senhora da Piedade e Santos Passos, que fica situado no alto da cidade de Penafiel, foi encontrado a estatueta de Deus Marte pelos operários que aí trabalhavam, os quais tiveram imediatamente o cuidado de a limar nas pernas para ver se a mesma era de ouro, seu único interesse.



Dada a desilusão ambiciosa, passou a estatueta para a mão de um capataz do referido trabalho, que, por sua vez, a mostrou na taberna da Espadela, da Rua Alfredo Pereira, a Albino Teixeira, latoeiro de profissão.

Este adquiriu-a e levou-a ao Conselheiro de Casais, a quem, por ser devedor de finezas sem conta, lhe levava tudo o que de velho podia arranjar e que lhe parecia ser aproveitável para as belas colecções da ilustre Casa de Casais Novos.



Certo dia, Abílio Miranda, foi visitar o amigo, Dr. Joaquim de Vasconcelos Mendes Guedes de Carvalho, vulgarmente conhecido por Conselheiro de Casais, e reparou que no vão de uma janela, perto do fogão de sala, se encontrava uma estatueta de bronze, que pelo seu aspecto fortemente oxidado lhe chamou a atenção.

Examinando-a, rapidamente verificou que se tratava de um lindo objecto romano, a que lhe tinha sido adaptado uma pequena peanha de madeira torneada para a manter em posição vertical.

Foi tanto o interesse que a estátuazinha despertou em Abílio Miranda, que o Sr. Joaquim de Vasconcelos lha ofereceu.

Volvidos tempos, o primo de Abílio Miranda, José Pinho, de Amarante, distintíssimo arqueólogo, ao visitar a sua casa de Abílio Miranda, situada na Rua Alfredo Pereira em Penafiel, ao ver a estatueta pediu que lha confiasse pois desejava fazer-lhe um cuidado estudo.

Levando-a para Amarante, devolveu-a algum tempo depois, juntamente com os apontamentos que se seguem, escritos em folhas de papel almaço:



« A estátuazinha, que, na sua maior altura, mede 210 milímetros e pesa 570 gramas logo à primeira vista nos dá a idéa dum militar romano, cujo marcial aspecto se nos apresenta da seguinte forma:

Tem a cabeça erguida, levemente inclinada para a direita, olha em frente, com a face inteiramente a descoberto, ficando-lhe o capacete de tal forma erguido que a parte superior da viseira é quási perpendicular à normal e paralela à linha que vai ter ao bardo inferior do cobre-nuca. 

 

A barba é anelada como o cabelo; este cai-lhe em tufos a todo o redor do capacete e só o bigode é corredio, pendendo em madeixas aos cantos da bôca.

As sobrancelhas são salientes; os olhos bastante encovados, tem pequenas cavidades a indicar as pupilas; a bóca está mal delineada e faltam-lhe as orelhas, encobertas totalmente pelos anéis do cabelo e barba.

O pescoço está em parte coberto pela gola ou da lorica ou da túnica.

O capacete (gálea), a-pesar-de se poder considerar um capacete de aparato, não tem bucculae — peças de metal que defendiam a face —nem correias ou barbela a segurá-lo por baixo do queixo.

A viseira termina, à altura das orelhas, por volutas vulgares, espécie de charneira sobre-posta ao guarda-nuca, onde deviam articular as bucculae, se, por acaso as tivesse e só nela há de invulgar o ser dobrada à frente, em forma de mineira de telhado, tendo ao meio uns ornatos ou pequena carranca que a erosão produzida pelos séculos não deixa determinar. O que, porém, no capacete se destaca e me leva a chamar-lhe uma inça de aparato, é o imponente penacho (crista), imitando os feitos de penas e aberto em V, que seguro apenas no apex, por sinal fóra do seu lugar próprio e mais deslocado para a frente, em bem lançada curva, magestoso abarca não só leda a copa do capacete (cudo), mas inflete ainda, tocando o bordo infererior do guarda-nuca, e adelgaçando sucessivamente até atingir o terço médio das costas. E desta forma se afasta bastante dos empenachados capacetes dos soldados romanos da época republicana, mesmo dos centuriões de Trajano, sendo, todavia, uma verdadeira réplica dalguns capacetes gregos dos tempos homéricos, daqueles que, em geral, cobrem a cabeça de Minerva e especialmente as das entidades militares de hierarquia superior. 

 

Patenteia o tronco coberto pela vulgar túnica de manga curta, que, sendo de costume atar com um pequeno cordão ou cinto na altura dos rins, nunca passa além do terço médio da coixa, e sobre ela é que ajusta a lorica ou couraça.

Esta, da mais antiga época grega, é a principal arma defensiva do soldado de então. No caso presente compõi-se dum corselet metálico, moldado ao corpo e Feito de duas peças, resguardando uma, pela frente, o peito e a parte superior do abdómen, e cobrindo a outra, na parte superior, as costas, desde o pescoço aos rins, dela saindo ainda, para defesa dos membros superiores, uma manga curta que não chega a cobrir a da túnica, e para resguardo da cinta e membros inferiores um pequeno saial adivinhando-se ser feito, tanto aquela como este, de tiras de couro, dispostas como as penas de uma ave, pois cuidadosamente se lhe imitou a forma. E a natural junção das duas peças metálicas, nos ombros e a ligação, com o pescoço são formadas ainda por tiras que, sem dúvida, também de couro deviam ser. 

 

Completam ainda a armadura do guerreiro que, incontestavelmente, a nossa estatueta representa, caneleiras metálicas (ocreae), modeladas pelas próprias pernas da personagem, cuja parte anterior lhe defendiam, desde o tornozelo até acima dos joelhos, devendo atar com correias para trás, como no nosso interessante bronze ainda se chega a descortinar.

E como a figura se patenteia descalça, eram estas, enfim, a única protecção das pernas.

Vejamos agora qual a sua atitude:

O braço direito avança para o lado, se-guindo a linha dos ombros; o ante-braço, formando com aquele ângulo obtuso, inclina-se ainda para cima e para a frente; e a mão, flectida no pulso, erguida ao nível da parte superior da cabeça e fechada ainda, fazendo menção de abarcar uma alta háste, dá-nos a ideia nítida que o guerreiro se apoiava a uma lança.

E visto que a perna do mesmo lado está firme, assentando no chão toda a palma do pé e o tronco sobre ela faz peso, vergando mesmo um pouco para a direita, era sobre a lança que o guerreiro unicamente se firmava.

O braço esquerdo descido e um pouco afastado do corpo, fazendo ângulo recto com o ante-braço, que se dirige para a frente e torce um pouco para a esquerda, embora esteja mutilada na altura do punho, dá-nos a ideia precisa que a personagem qualquer objecto segurava com essa mão.

Enfim, a perna esquerda afasta-se também um pouco da direita e avança em frente, flectindo-se depois no joelho, para no chão apenas ao de leve tocar com a ponta do pé.

  • Será possível imaginar o que a figura devia segurar na mão esquerda?

Provavelmente um qualquer dos atributos que lhe faltam para completar a sua indumentária guerreira: a clâmide, a espada curta ou o escudo - quando não tossem mesmo todos esses três objectos, como se nos mostra um guerreiro do altar d'Ahenobarbus, figurando no tomo II, a pág. 314, do Mamute! d'Archéologie Pontearia de R. Cognot e Chapot.

Posto isto, que interpretação se há-de dar a tão interessante e por todos os títulos valiosa peça arqueológica, sem paralelo ainda nos nossos Museus, onde a colecção dos bronzes é relativamente limitada?

Quanto a mim está-se em presença dum típico exemplar de estatuária romana de feição severamente cultural e com este fim transportado de Roma para este canto remoto da Calarcia.

E, como pelo seu aspecto, a esta conclusão sou levado a chegar, é para mim fora de dúvida que se trata do deus Marte que deveria ter figurado num fanum e, como perto do lugar da sua descoberta temos conhecimento dum castro, era ai, naturalmente, que a referida divindade foi venerada ».

Com o aparecimento da Biblioteca Museu Municipal de Penafiel, Abílio Miranda ofereceu o seu espólio particular à mesmo, incluindo o deus Marte, que ainda hoje permanece no Museu Municipal de Penafiel, que poderia ou deveria muito bem chamar-se:


Museu Municipal Abílio Miranda.