DEUS MARTE DO SANTUÁRIO AO MUSEU
DEUS
MARTE
DO
SANTUÁRIO AO MUSEU
No
início do século passado, a quando se procedia à abertura dos
alicerces, para a construção do Santuário de Nossa Senhora da
Piedade e Santos Passos, que fica situado no alto da cidade de
Penafiel, foi encontrado a estatueta de Deus Marte pelos operários
que aí trabalhavam, os quais tiveram imediatamente o cuidado de a
limar nas pernas para ver se a mesma era de ouro, seu único
interesse.
Dada
a desilusão ambiciosa, passou a estatueta para a mão de um capataz
do referido trabalho, que, por sua vez, a mostrou na taberna da
Espadela, da Rua Alfredo Pereira, a Albino Teixeira, latoeiro de
profissão.
Este
adquiriu-a e levou-a ao Conselheiro de Casais, a quem, por ser
devedor de finezas sem conta, lhe levava tudo o que de velho podia
arranjar e que lhe parecia ser aproveitável para as belas colecções
da ilustre Casa de Casais Novos.
Certo
dia, Abílio Miranda, foi visitar o amigo, Dr. Joaquim de Vasconcelos
Mendes Guedes de Carvalho, vulgarmente conhecido por Conselheiro de
Casais, e reparou que no vão de uma janela, perto do fogão de sala,
se encontrava uma estatueta de bronze, que pelo seu aspecto
fortemente oxidado lhe chamou a atenção.
Examinando-a,
rapidamente verificou que se tratava de um lindo objecto romano, a
que lhe tinha sido adaptado uma pequena peanha de madeira torneada
para a manter em posição vertical.
Foi
tanto o interesse que a estátuazinha despertou em Abílio Miranda,
que o Sr. Joaquim de Vasconcelos lha ofereceu.
Volvidos
tempos, o primo de Abílio Miranda, José Pinho, de Amarante,
distintíssimo arqueólogo, ao visitar a sua casa de Abílio Miranda,
situada na Rua Alfredo Pereira em Penafiel, ao ver a estatueta pediu
que lha confiasse pois desejava fazer-lhe um cuidado estudo.
Levando-a
para Amarante, devolveu-a algum tempo depois, juntamente com os
apontamentos que se seguem, escritos em folhas de papel almaço:
«
A estátuazinha, que, na sua maior altura, mede 210 milímetros e
pesa 570 gramas logo à primeira vista nos dá a idéa dum militar
romano, cujo marcial aspecto se nos apresenta da seguinte forma:
Tem
a cabeça erguida, levemente inclinada para a direita, olha em
frente, com a face inteiramente a descoberto, ficando-lhe o capacete
de tal forma erguido que a parte superior da viseira é quási
perpendicular à normal e paralela à linha que vai ter ao bardo
inferior do cobre-nuca.
A
barba é anelada como o cabelo; este cai-lhe em tufos a todo o redor
do capacete e só o bigode é corredio, pendendo em madeixas aos
cantos da bôca.
As
sobrancelhas são salientes; os olhos bastante encovados, tem
pequenas cavidades a indicar as pupilas; a bóca está mal delineada
e faltam-lhe as orelhas, encobertas totalmente pelos anéis do cabelo
e barba.
O
pescoço está em parte coberto pela gola ou da lorica ou da túnica.
O
capacete (gálea), a-pesar-de se poder considerar um capacete de
aparato, não tem bucculae — peças de metal que defendiam a face
—nem correias ou barbela a segurá-lo por baixo do queixo.
A
viseira termina, à altura das orelhas, por volutas vulgares, espécie
de charneira sobre-posta ao guarda-nuca, onde deviam articular as
bucculae, se, por acaso as tivesse e só nela há de invulgar o ser
dobrada à frente, em forma de mineira de telhado, tendo ao meio uns
ornatos ou pequena carranca que a erosão produzida pelos séculos
não deixa determinar. O que, porém, no capacete se destaca e me
leva a chamar-lhe uma inça de aparato, é o imponente penacho
(crista), imitando os feitos de penas e aberto em V, que seguro
apenas no apex, por sinal fóra do seu lugar próprio e mais
deslocado para a frente, em bem lançada curva, magestoso abarca não
só leda a copa do capacete (cudo), mas inflete ainda, tocando o
bordo infererior do guarda-nuca, e adelgaçando sucessivamente até
atingir o terço médio das costas. E desta forma se afasta bastante
dos empenachados capacetes dos soldados romanos da época
republicana, mesmo dos centuriões de Trajano, sendo, todavia, uma
verdadeira réplica dalguns capacetes gregos dos tempos homéricos,
daqueles que, em geral, cobrem a cabeça de Minerva e especialmente
as das entidades militares de hierarquia superior.
Patenteia
o tronco coberto pela vulgar túnica de manga curta, que, sendo de
costume atar com um pequeno cordão ou cinto na altura dos rins,
nunca passa além do terço médio da coixa, e sobre ela é que
ajusta a lorica ou couraça.
Esta,
da mais antiga época grega, é a principal arma defensiva do soldado
de então. No caso presente compõi-se dum corselet metálico,
moldado ao corpo e Feito de duas peças, resguardando uma, pela
frente, o peito e a parte superior do abdómen, e cobrindo a outra,
na parte superior, as costas, desde o pescoço aos rins, dela saindo
ainda, para defesa dos membros superiores, uma manga curta que não
chega a cobrir a da túnica, e para resguardo da cinta e membros
inferiores um pequeno saial adivinhando-se ser feito, tanto aquela
como este, de tiras de couro, dispostas como as penas de uma ave,
pois cuidadosamente se lhe imitou a forma. E a natural junção das
duas peças metálicas, nos ombros e a ligação, com o pescoço são
formadas ainda por tiras que, sem dúvida, também de couro deviam
ser.
Completam
ainda a armadura do guerreiro que, incontestavelmente, a nossa
estatueta representa, caneleiras metálicas (ocreae), modeladas pelas
próprias pernas da personagem, cuja parte anterior lhe defendiam,
desde o tornozelo até acima dos joelhos, devendo atar com correias
para trás, como no nosso interessante bronze ainda se chega a
descortinar.
E
como a figura se patenteia descalça, eram estas, enfim, a única
protecção das pernas.
Vejamos
agora qual a sua atitude:
O
braço direito avança para o lado, se-guindo a linha dos ombros; o
ante-braço, formando com aquele ângulo obtuso, inclina-se ainda
para cima e para a frente; e a mão, flectida no pulso, erguida ao
nível da parte superior da cabeça e fechada ainda, fazendo menção
de abarcar uma alta háste, dá-nos a ideia nítida que o guerreiro
se apoiava a uma lança.
E
visto que a perna do mesmo lado está firme, assentando no chão toda
a palma do pé e o tronco sobre ela faz peso, vergando mesmo um pouco
para a direita, era sobre a lança que o guerreiro unicamente se
firmava.
O
braço esquerdo descido e um pouco afastado do corpo, fazendo ângulo
recto com o ante-braço, que se dirige para a frente e torce um pouco
para a esquerda, embora esteja mutilada na altura do punho, dá-nos a
ideia precisa que a personagem qualquer objecto segurava com essa
mão.
Enfim,
a perna esquerda afasta-se também um pouco da direita e avança em
frente, flectindo-se depois no joelho, para no chão apenas ao de
leve tocar com a ponta do pé.
- Será possível imaginar o que a figura devia segurar na mão esquerda?
Provavelmente
um qualquer dos atributos que lhe faltam para completar a sua
indumentária guerreira: a clâmide, a espada curta ou o escudo -
quando não tossem mesmo todos esses três objectos, como se nos
mostra um guerreiro do altar d'Ahenobarbus, figurando no tomo II, a
pág. 314, do Mamute! d'Archéologie Pontearia de R. Cognot e Chapot.
Posto
isto, que interpretação se há-de dar a tão interessante e por
todos os títulos valiosa peça arqueológica, sem paralelo ainda nos
nossos Museus, onde a colecção dos bronzes é relativamente
limitada?
Quanto
a mim está-se em presença dum típico exemplar de estatuária
romana de feição severamente cultural e com este fim transportado
de Roma para este canto remoto da Calarcia.
E,
como pelo seu aspecto, a esta conclusão sou levado a chegar, é para
mim fora de dúvida que se trata do deus Marte que deveria ter
figurado num fanum e, como perto do lugar da sua descoberta temos
conhecimento dum castro, era ai, naturalmente, que a referida
divindade foi venerada ».
Com
o aparecimento da Biblioteca Museu Municipal de Penafiel, Abílio
Miranda ofereceu o seu espólio particular à mesmo, incluindo o
deus Marte, que ainda hoje permanece no Museu Municipal de Penafiel, que poderia ou deveria
muito bem chamar-se:
Museu
Municipal Abílio Miranda.
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