A FANFARRA
Aqui está uma mistura de imaginação com
vivências do final da década de 50 do século passado, servida em forma de
conto.
A
FANFARRA
- Ó mãe!... Tirou-me o
prato da sopa tão cheio!
- Come...come e cala-te, olha p'ró prato
do teu pai.
- Sabes que dia é hoje?!... Quinta-feira.
Põe-te a fazer fitas e não trates de
comer...já sabes, ficas em casa. Vou eu sozinho.
- Ora escuta!
Pum...Pum...Pum...Ca...tra...pum...
- Já vem aí, ouves? - E vinha mesmo.
- Ainda vem longe.
- Bem!...Bem,
não te mexas e depois choras.
Tinha
os ouvidos de tal maneira apurados que pelo som sabia dizer aonde é que se
encontrava a fanfarra. Agora sim, devia estar perto. Bufei à sopa. Remexi as
couves com a colher para arejar, pois já lhe tinha misturado algumas migalhas
de pão para ajudar a arrefecer. Enquanto a sopa me entrava pelos olhos, os
bombos e as cornetas vibravam-me nos tímpanos. Com os pés marcava a cadência. E
num acto de desespero ou de loucura, quem sabe, fechei os olhos, respirei
fundo, ergui a malga com as duas mãos, abri a boca até atrás e...zás. Mas o
caudal de caldo era maior que o poder de absorção. Engasgueis -me. Borrifei a
mesa toda. As couves saíram pela boca a uma pressão tal que fazia lembrar um
pulverizador.
Minha mãe aflita deu-me algumas palmadas nas costas.
O ranho espreitou no nariz. Pelos
olhos rolaram lágrimas. Com o guardanapo limpou-me os queixos e a boca.
- És tolo, não vês?!... Até
podias morrer sufocado. Vai com Santo António.
- Oh!...palavra que ouvi. D'um pulo saltei
abaixo do banco e ala moleiro!... P'rá frente é que é caminho.
Pela
costeira do hospital acima, foi correr até à câmara.
Fanfarra a sair do quartel |
Quando cheguei, até a comida me
vinha à boca e o coração trabalhava com força. Meu pai, que veio nas calmas
advertiu-me:
- Não tornes a correr assim! Ouviste?
Vens com o estômago cheio e faz-te mal.
Mas a minha atenção
estava toda ela concentrada na fanfarra que tocava voltada para o monumento aos mortos da Grande Guerra, na Praça Municipal.
Eu, que vivia a fanfarra,
enfileirava ao lado do meu pai. Marcava passo e com os dedos tocava corneta.
Via no meu pai o comandante, que não tocava nada, só dava ordens.
- Direita volver! E todos os
soldados e eu voltamos à direita.
- Em frente.... marche!...
E os bombos grandes deram a
entrada:
Pum.... Pum...
As caixas responderam a seu
tempo:
Ca...tra...Pum...Ca...Tra...Pum
...Pum... Pum...
As cornetas por fim
entrelaçaram-se:
Tá...Tá...Tá… Tá...Tá...
Lá ia a fanfarra de regresso ao quartel.
Olhei de baixo para cima para o
meu comandante.
- Vá, vai lá até ao cinema mas sempre pelo
passeio.
Corri para recuperar o atraso.
Coloquei-me à frente e com os braços no ar gesticulava, tentando fazer os mesmos
desenhos no espaço como os soldados que tocavam os bombos grandes. Na rua à frente da
fanfarra muitos miúdos, na sua maioria pobres, saltavam e dançavam com alegria.
O Zéquita colega de escola
chamava-me, mas eu acenei-lhe com a cabeça que não. Ao chegar ao cinema,
marquei passo e segui a fanfarra com os meus olhitos. Quem me dera ir até lá
adiante. Olhei de soslaio meu pai. Pareceu-me distraído a falar com o senhor Mendes.
A fanfarra já ia ao pé da farmácia
do Zéquinha. Ou agora... ou nunca. Mas mal deitei o pé abaixo do passeio, o
assobio:
-Fiu...Fiu...Fiu...
-
Ora bolas!
Estaquei e virei-me para onde
estava meu pai que me acenou com a mão.
Meia-volta!... Marche. Lá vinha
marcando o passo até ao meu comandante.
Ordens são ordens....e as ordens
não discutem....cumprem-se. Quando cheguei junto dele, acabou-se a conversa com
o senhor Mendes.
- Despede-te do senhor Mendes!
- Até'manhã! Ao mesmo tempo que
lhe esticava a mão para uma bacalhoada.
- Adeus!
Pelo caminho lá vinha o
interrogatório.
- Para onde é que você ia?
Não respondia. Cariz baixo e as
faces a ficarem vermelhas, todo eu cumplicidade.
- Então não te disse, que era só até ao
cinema?
Abanei com a cabeça
afirmativamente.
- Não tens boca para falar?... Os
burros é que abanam com a cabeça.
Comecei a choramingar.
- Alguém te bateu para ires com
essa cara?! Vê lá o que estás a arranjar! Parece que queres ir a toque de caixa
para casa.
Chegamos à porta de casa. Meu
pai lançou a chave à fechadura.
- Vá para casa. Bateu com a
porta e tornou a sair.
-
Ainda bem! Respirei aliviado. Amanhã já a neura lhe tinha passado.
No dia seguinte, brincava com os
meus amigos no quelho que fica nas traseiras da minha casa. A dada altura
passou o sôr Alfredo com um carrinho de mão cheio de caixas e rolos de papelão
para lançar na lixeira. Mal ele foi embora, lançamo-nos a esgravatar o lixo.
Foi nesse momento que me lembrei da fanfarra.
A caminho da Praça Municipal |
- Vamos brincar à fanfarra?
- Vamos.
Abri a porta do quintal e fui a
casa buscar um jornal velho e baraços. Rasguei-o folha a folha e com elas fazia
bivaques. Dei um a cada um. Aos caixotes atamos um baraço, o qual passávamos ao
ombro. Com os canudos fizemos cornetas. Dois paus um em cada mão dos que tinham
caixotes e a fanfarra estava pronta. Pela primeira
vez eu era o comandante. Ensinava as posições, ensaiava os toques várias vezes
até todos saberem bem. Depois demos umas poucas de voltas no quelho. Eu cheio
de novi'oras, dava vozes de comando:
- Direita....er!
- Esquerda....er!
- Ordinário....marche!
- Meia-volta....er!
Vamos dar a última volta, porque
está na hora do meu pai chegar e eu tenho que ir para casa.
O quartel |
No final algo corria mal. A
fanfarra não tinha quartel.
- E agora?... Aonde é que vamos
guardar os instrumentos.
- Eu guardava, mas a minha mãe
deita tudo ao lixo e ainda me sova.
Lá se oferecia o Gustavo.
- Eu posso guardar, mas não
me responsabilizo se ficarem sem eles. Realmente era um risco.
- Mas quê!... Não havia outra
alternativa pelo que se tinha de aceitar.
- Pronto, guarda tudo Gustavo.
Na sua casa pequena e térrea,
coitado, lá escondia como podia. O pior era a avó dele a Semaria. O raio da
velha parecia que tinha faro. Onde lhe cheirasse a papel, lá estava a lançar as
mãos e...saco.
Assim aconteceu. Quando o
Gustavo acordou, só lhes viu o sítio.
- Já onde é que eles iriam!?
Foi então que se lembrou de ir
espreitar ao farrapeiro da rua, o senhor Manuel-Manco. Junto à porta, um camião
carregava papel Empoleirou-se no taipal da camioneta e
viu os seus caixotes, já rasgados e atados.
- Conheço-os pelos baraços, são
aqueles mesmos. Não havia nada a fazer, a não ser rezar-lhes pela alma.
- Tudo que vê, tudo pega, como se
aquilo fosse dela!
- Mas não faz mal....
Hei-de arranjar uns ainda melhor
nas lixeiras da cidade.
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