15 maio 2013

A FANFARRA



Aqui está uma mistura de imaginação com vivências do final da década de 50 do século passado, servida em forma de conto.     
 
A FANFARRA

     - Ó mãe!... Tirou-me o prato da sopa tão cheio!
     - Come...come e cala-te, olha p'ró prato do teu pai.
     - Sabes que dia é hoje?!... Quinta-feira.
        Põe-te a fazer fitas e não trates de comer...já sabes, ficas em casa. Vou eu sozinho.
     - Ora escuta!
         Pum...Pum...Pum...Ca...tra...pum...
     - Já vem aí, ouves? - E vinha mesmo.
     - Ainda vem longe.
     - Bem!...Bem, não te mexas e depois choras.
Tinha os ouvidos de tal maneira apurados que pelo som sabia dizer aonde é que se encontrava a fanfarra. Agora sim, devia estar perto. Bufei à sopa. Remexi as couves com a colher para arejar, pois já lhe tinha misturado algumas migalhas de pão para ajudar a arrefecer. Enquanto a sopa me entrava pelos olhos, os bombos e as cornetas vibravam-me nos tímpanos. Com os pés marcava a cadência. E num acto de desespero ou de loucura, quem sabe, fechei os olhos, respirei fundo, ergui a malga com as duas mãos, abri a boca até atrás e...zás. Mas o caudal de caldo era maior que o poder de absorção. Engasgueis -me. Borrifei a mesa toda. As couves saíram pela boca a uma pressão tal que fazia lembrar um pulverizador.
Minha mãe aflita deu-me algumas palmadas nas costas.
             O ranho espreitou no nariz. Pelos olhos rolaram lágrimas. Com o guardanapo limpou-me os queixos e a boca.
              - És tolo, não vês?!... Até podias morrer sufocado. Vai com Santo António.
              - Oh!...palavra que ouvi. D'um pulo saltei abaixo do banco e ala moleiro!... P'rá frente é que é caminho.
Pela costeira do hospital acima, foi correr até à câmara. 



Fanfarra a sair do quartel
             Quando cheguei, até a comida me vinha à boca e o coração trabalhava com força. Meu pai, que veio nas calmas advertiu-me:
              - Não tornes a correr assim! Ouviste?
              Vens com o estômago cheio e faz-te mal.
 Mas a minha atenção estava toda ela concentrada na fanfarra que tocava voltada para o monumento aos mortos da Grande Guerra, na Praça Municipal.
              Eu, que vivia a fanfarra, enfileirava ao lado do meu pai. Marcava passo e com os dedos tocava corneta. Via no meu pai o comandante, que não tocava nada, só dava ordens.
              - Direita volver! E todos os soldados e eu voltamos à direita.
              - Em frente.... marche!...
              E os bombos grandes deram a entrada:
              Pum.... Pum...
              As caixas responderam a seu tempo:
              Ca...tra...Pum...Ca...Tra...Pum ...Pum... Pum...
              As cornetas por fim entrelaçaram-se:
              Tá...Tá...Tá… Tá...Tá...  
Lá ia a fanfarra de regresso ao quartel.
             Olhei de baixo para cima para o meu comandante.
             - Vá, vai lá até ao cinema mas sempre pelo passeio.
             Corri para recuperar o atraso. Coloquei-me à frente e com os braços no ar gesticulava, tentando fazer os mesmos desenhos no espaço como os soldados que tocavam os bombos grandes. Na rua à frente da fanfarra muitos miúdos, na sua maioria pobres, saltavam e dançavam com alegria.
            O Zéquita colega de escola chamava-me, mas eu acenei-lhe com a cabeça que não. Ao chegar ao cinema, marquei passo e segui a fanfarra com os meus olhitos. Quem me dera ir até lá adiante. Olhei de soslaio meu pai. Pareceu-me distraído a falar com o senhor Mendes.
            A fanfarra já ia ao pé da farmácia do Zéquinha. Ou agora... ou nunca. Mas mal deitei o pé abaixo do passeio, o assobio:
-Fiu...Fiu...Fiu...
- Ora bolas!
             Estaquei e virei-me para onde estava meu pai que me acenou com a mão.
             Meia-volta!... Marche. Lá vinha marcando o passo até ao meu comandante.
             Ordens são ordens....e as ordens não discutem....cumprem-se. Quando cheguei junto dele, acabou-se a conversa com o senhor Mendes.
               - Despede-te do senhor Mendes!
               - Até'manhã! Ao mesmo tempo que lhe esticava a mão para uma bacalhoada.  
               - Adeus!
               Pelo caminho lá vinha o interrogatório.
               - Para onde é que você ia?
               Não respondia. Cariz baixo e as faces a ficarem vermelhas, todo eu cumplicidade.
   - Então não te disse, que era só até ao cinema?
              Abanei com a cabeça afirmativamente.
               - Não tens boca para falar?... Os burros é que abanam com a cabeça.
               Comecei a choramingar.
               - Alguém te bateu para ires com essa cara?! Vê lá o que estás a arranjar! Parece que queres ir a toque de caixa para casa.
               Chegamos à porta de casa. Meu pai lançou a chave à fechadura.
               - Vá para casa. Bateu com a porta e tornou a sair.
               - Ainda bem! Respirei aliviado. Amanhã já a neura lhe tinha passado.
               No dia seguinte, brincava com os meus amigos no quelho que fica nas traseiras da minha casa. A dada altura passou o sôr Alfredo com um carrinho de mão cheio de caixas e rolos de papelão para lançar na lixeira. Mal ele foi embora, lançamo-nos a esgravatar o lixo. Foi nesse momento que me lembrei da fanfarra.

A caminho da Praça Municipal
               - Vamos brincar à fanfarra?
               - Vamos.
               Abri a porta do quintal e fui a casa buscar um jornal velho e baraços. Rasguei-o folha a folha e com elas fazia bivaques. Dei um a cada um. Aos caixotes atamos um baraço, o qual passávamos ao ombro. Com os canudos fizemos cornetas. Dois paus um em cada mão dos que tinham caixotes e a fanfarra estava pronta. Pela primeira vez eu era o comandante. Ensinava as posições, ensaiava os toques várias vezes até todos saberem bem. Depois demos umas poucas de voltas no quelho. Eu cheio de novi'oras, dava vozes de comando:
              - Direita....er!
              - Esquerda....er!
              - Ordinário....marche!           
              - Meia-volta....er!
              Vamos dar a última volta, porque está na hora do meu pai chegar e eu tenho que ir para casa.

O quartel
              No final algo corria mal. A fanfarra não tinha quartel.
              - E agora?... Aonde é que vamos guardar os instrumentos.
              - Eu guardava, mas a minha mãe deita tudo ao lixo e ainda me sova.
              Lá se oferecia o Gustavo.        
  - Eu posso guardar, mas não me responsabilizo se ficarem sem eles. Realmente era um risco.
              - Mas quê!... Não havia outra alternativa pelo que se tinha de aceitar.
              - Pronto, guarda tudo Gustavo.
              Na sua casa pequena e térrea, coitado, lá escondia como podia. O pior era a avó dele a Semaria. O raio da velha parecia que tinha faro. Onde lhe cheirasse a papel, lá estava a lançar as mãos e...saco.
               Assim aconteceu. Quando o Gustavo acordou, só lhes viu o sítio.
               - Já onde é que eles iriam!?
               Foi então que se lembrou de ir espreitar ao farrapeiro da rua, o senhor Manuel-Manco. Junto à porta, um camião carregava papel Empoleirou-se no taipal da camioneta e viu os seus caixotes, já rasgados e atados.
              - Conheço-os pelos baraços, são aqueles mesmos. Não havia nada a fazer, a não ser rezar-lhes pela alma.
             - Tudo que vê, tudo pega, como se aquilo fosse dela!
             - Mas não faz mal....
             Hei-de arranjar uns ainda melhor nas lixeiras da cidade.