O S. JOÃO DO SÔ REIS
O S. JOÃO DO SÔ REIS
(A NOSSA GENTE)
CONTO
Dedicado à Mafalda e ao Neca
Toda a miudagem conhecia o Reis Livreiro. O dono daquela livraria de portas azuis, situada na Rua do Paço, que costumava ter peixes vermelhos num aquário redondo. Mas o que o tornava mais conhecido era sem dúvida, a sua cascata de S. João. Os moinhos e a roda com os ciclistas a trabalharem a água, o homem a subir ao bacalhau etc., etc.
NECA E MAFALDA |
Segundo se falava, este ano ia ser d’arromba. Sô Reis tinha mesmo dito que desta vez, havia de pôr a cachopada toda tola. A rua já se encontrava ornamentada, com bandeiras de muitas nações, que seu irmão marinheiro tinha trazido dos navios. Sô Reis conhecia-as todas.
- Sabes de que nação é aquela toda vermelha com a cruz branca?
- Não!... Sô Reis.
- É da Suiça. Daquele país aonde há neve todo ano e onde se fazem os relógios.
- Ah!...
- E aquela toda branca com uma roda vermelha?
- Também não sei.
- Essa é do Japão. O Japão que fica na Ásia.
-Ena!.... Sô Reis conhecia uma por uma. Geografia era com ele....puxa!
- E que tal!... Tá bem ou quê?
- Está bonito Sô Reis.
- Pronto. Amanhã já sabem é preciso vir logo de manhã para ajudar a trazer as palmas e ir à serração ao serrim para a cascata.
- A que horas Sô Reis?
- De manhã cedo, não é preciso horas marcadas.
- Conte comigo, logo que possa vir, eu venho.
Ao romper do dia já se ouvia pregar tábuas. Não podia ser outra pessoa senão o Sô Reis. Não descansei enquanto não pude dar uma saltada á rua e certificar-me do que se estava a passar. Nessa manhã só queria fazer recados e de cada vez que prestava os meus serviços lá ficava cinco minutos ao redor da cascata. Agora sim ia-se dar a inauguração oficial da cascata. Sô Reis vestia a sua balalaica e trazia na mão três foguetes de quinze tostões. Chegou-lhes o lume e lançou-os ao céu aonde deram cinco tiros cada um. De seguida distribuiu as bandejas aos putos que começaram o peditório. Uma marcha era tocada no banjo pelo Sô Reis Livreiro assentado no passeio do Colégio do Carmo, como só ele sabia tocar. Todo o transeunte que entrava na rua era cravado.
- Dê-me xinco tistões p'ró S.João do Sô Reis!
- Não tenho trocado.
- Eu vou à livraria e distroco.Ninguém podia escapar.
- Sô Reis!... Os Papeiros vêm p’rá qui pedir e não deitam ali o dinheiro.
- Corram com esses gajos. Que vão pedir para a porta deles.
Quando se juntava um número de pessoas a apreciar a cascata, Sô Reis tinha vaidade em pôr aquilo tudo a funcionar e fazer os seus comentários.
- Ó rapaz, liga lá a água para estes senhores verem isto a trabalhar.
- Então, toca a pôr a bola de pingue-pongue a subir no repuxo.
- Dou-lhe os parabéns, é a melhor cascata qu’eu já vi em toda a minha vida.
Toda a gente desde miúdo a graúdo elogiava. As mães viam-se aflitas para arrancar seus filhos para casa. Miúdo fazia birra e puxava a mãe pelo braço pois queria ver melhor.
À noite vai haver tourada. Vai ser bestial. Estava ansioso que chegasse a lua. E nós que nunca tínhamos visto uma tourada. De tarde o cavalo e a vaca feitos em papelão cheios de bombas foram colocados na rua para todos verem. Alguns miúdos ousaram mesmo pegar neles e demonstrar os seus dotes tauromáquicos.
A noite caiu. Gente de todos os lados da cidade acorria ao Largo para ver a tourada. Os corpos compactos formavam um círculo. Esse vazio era a arena. Gregório corneteiro da Segunda Grande Guerra dava as entradas num clarim desafinado e ferrugento. De casa de Sô João saem os forcados e os toureiros fardados a rigor. Outro toque na corneta e entra o cavalo e a vaca. Palmas de todos os lados.
A vaca investia e o toureiro fazia a "xicoelina".
- Olé!... Olé!... Gritava a multidão.
Agora é que vai ser porreiro, tocou para a pega, que foi feita com valentia embora alguns forcados tivessem caído.
Risos e palmas com olés à mistura. Depois desta demonstração de pura tauromaquia chegou-se o lume à vaca e ao cavalo. A arena desfez-se. As bombas arrebentavam de todos os lados e o pessoal assustado, fugia. Os miúdos riam, ao mesmo tempo que seus olhitos guardavam estas imagens na retina. Durante algum tempo ainda falavam e descreviam à sua maneira as imagens que lhe ficaram na memória.
Lá
- Já não me lembro bem como foi!
Então Ricardo pegava num banco da cozinha, enfiava-o pela cabeça e segurava-o pelas pernas com as mãos.
- Foi assim, quer ver?
- Anda lá!
- Lá vai a vaca...fujam...fujam...
-Lá vai a vaca e o Pernacurta....
Dando uma volta à mesa da cozinha.
O Coelho, a Zeza e a tia Zinda mijavam-se a rir enquanto Tio Bino ajudava Ricardo a tirar o banco pela cabeça.
- Foi mesmo assim!... Agora já me estou a lembrar.
- Hei-de falar ao senhor Reis. Para o ano quem vai com a vaca és tu.
- A sério, Ti Bino?
- A sério....
Fernando Oliveira - Furriel de Junho
1 Comments:
E porque não dedicar ao filho mais velho , Manuel Reis
Enviar um comentário
<< Home