O TENENTE DE MILHUNDRES
O TENENTE DE MILHUNDRES
OU MILHUNDOS
TENENTE DE MILHUNDOS |
João Nunes Borges de
Carvalho, natural de Milhundos, Miguelista dos quatro costados, foi Tenente em
Lanceiros.
Para servir o seu
ideal, nas lutas contra os liberais recrutou homens, formou uma guerrilha com
cerca de 20 homens que comandava e com ela se opunha aos liberais.
A guerrilha era um
grito de revolta ecoando os outeiros da velha Arrifana, grito isolado,
desprezado, ridicularizado mas mantido às custas dos seus bens.
ELE VENDEU ESTA CASA PARA MANTER A SUA GUERRILHA |
Chamavam aos
guerrilheiros do Tenente “o batalhão das mantas” porque eles, à falta de
capotes militares, traziam ao ombro a manta de tiras da sua cama.
Quando a sua tropa
vinha à cidade de Penafiel, avisava sempre da sua chegada, querendo que nas
ruas da mesma fossem colocadas luminárias no dia do seu aniversário.
Por fim, acabou por ser
vencido e preso no Limoeiro 20 anos, durante os quais, nunca mais cortou as
barbas.
Para mais sabermos
sobre esta personalidade, nada melhor do que ler o capítulo XIII, do livro
Memórias do Cárcere de Camilo Castelo Branco.
CAMILO CASTELO BRANCO - ESCRITOR |
“Saí
de Coimbra para Vila Real, quando as aulas se fecharam, por motivo da revolução
popular de 1846.
À
saída de Penafiel, eu e o meu companheiro recebemos aviso de termos pela vanguarda
uma guerrilha de realistas, capitaneada pelo tenente Milhundres.
Quis
o meu companheiro retroceder; mas eu convenci-o da desnecessidade de fugirem
aos realistas dois pobres académicos, que se presumiam política e socialmente
indefinidos neste mundo.
Fomos
avante.
Exatissimamente.
Lá estava, na quebrada de um serro, densa mó de gente armada, com as armas
embandeiradas de escarlate. A tiro de bala, mandaram-nos fazer alto, e nós
paramos, fiados na lealdade dos parlamentários, que vieram a nós com as clavinas
no braço. Eram dois, com o caudilhe à frente.
Milhundres
era um homem mal encarado. Cinquenta anos teria, e grisalhas as barbas. Vestia
casaco de miliciano com insígnias de tenente, e dragonas de capitão-mor. Trazia
a banda a tiracolo, e uma larga espada de misericórdia enfiada num boldrié de
coiro de anta.
-
Quem são, e donde vêm? – disse ele.
-
Somos estudantes, e vimos de Coimbra.
-
Quem vive? – tornou ele.
-
O senhor D. Miguel! –respondemos.
-
O senhor D. Miguel primeiro! Replicou o guerrilheiro, acentuando a palavra
suplementar, como se a nossa profissão de fé, sem a adição, ficasse equívoca.
-
O senhor D. Miguel primeiro! – repetimos, sacudindo os gorros.
-
Então, visto que são dos nossos, - retrucou Milhundres – andem lá para a
retaguarda, que nós vamos entrar em Penafiel. Precisamos de quem escreva
proclamações ao povo, e os senhores, se são estudantes, hão-de fazer coisas que
se veja.
Consultei
a minha bossa das proclamações, e disse:
-
Vamos lá!
O
meu companheiro estava enfiado, porque receava que o general guerrilheiro o
nomeasse chefe de estado-maior. Eu achava extrema graça a tudo aquilo.
O CRUZEIRO A QUE SE REFERE O CAMILO, E HOJE È PERTENÇA DA QUINTA DA AVELEDA |
Entrámos
em Penafiel.
Quando
surgimos no cruzeiro (1), que se ergue ao topo da primeira
rua (2),
os moradores da cidade começaram a fechar as portas.
-
Que ovação! – disse eu ao meu condiscípulo – dir-se-ia que somos malta de
salteadores que irrompemos das brenhas!
-
Se pudéssemos fugir!... – murmurou o meu amigo.
-
Cala-te, que isso é sério! – disse eu.
Milhundres
entoou os vivos, aos quais responderam entusiasticamente. Ao fim da rua
engrossaram as nossas forças com três maltrapilhos armados de foice, e defronte
da cadeia fizemos junção com um alferes de milícias montado, e alguns pedestres
em tamancos.
Repetiram-se
os vivas.
-
Primeiro que tudo – disse o chefe – vamos à igreja dar graças a Deus.
-
Era um Te-Deum económico, com profusão de fervor religioso.
Abriu-se
de par em par o templo.
E
os valentes prostraram-se, e rezaram o bendito com grande estridor de vozes.
Evacuado
o templo, disse eu a Milhundres:
-
É necessário proclamar?
-
É; vá vossemecê escrever um edital, e o seu companheiro outro – respondeu o
caudilho.
-
Onde é o quartel general? – perguntei.
-
Não sei por ora. Vossemecês onde se vão aquartelar?
-
Na estalagem do Mulato.
-
Pois então é lá. Eu vou nomear autoridades, e lá vou ter. Amanhã vem aqui fazer
junção connosco o brigadeiro Bernardino. O Mac-Donnell já está em campo, e o
Cândido de Anelhe é seu secretário. Diga lá isto vossemecê na proclamação.
-
Muito bem.
PORTÃO DE ENTRADA DA QUINTA DE MILHUNDOS PERTENÇA DO TENENTE |
Galopámos
para o quartel general.
-
Vamos proclamar? – disse eu ao meu companheiro.
-
Pois vai, que eu, em chegando ao cimo da rua, enterro as esporas nos ilhais do
macho – respondeu ele, com as cores ainda quebradas.
-
Pois não achas bonito? Acaso estarás mais divertido na tua aldeia? Tiremos
partido de tudo, enquanto não cheira a pólvora. Vamos colaborar numa
proclamação em estilo bíblico.
-
Pois fica, se achas graça a isto; eu decerto fujo.
-
Pois então também eu, que me parece estúpida a farsa, se me deixas em monólogo.
Era
fácil e segura a fuga, mas honrosa não me parece muito. Eu ia envergonhado do
meu procedimento, e compadecido do cabecilha. Pareceu-me desgraçado aquele
homem, e daí vem o desvaneio da simpatia que lhe ganhei. Além de que, de mim
confesso sem pejo, que me seria difícil escrever uma proclamação sentida;
gramatical não direi. A minha família era miguelista, e festejava, como em
sinagoga recôndita, os dias solenes da sua crença. Milhundres seria o bem-vindo
e honorificado em casa de minha família. Ia-me por isso a consciência
recriminando de mau coração, de covarde ânimo, e de apóstata vilão.
Tudo
isto se me esqueceu quando cheguei a Amarante, e só me tornou à memória quando
vi, em 1861, entrar Milhundres preso nas cadeias da Relação
Já
mal se conhecia o antigo chefe de guerrilhas. Longas barbas, eram as mesmas,
mas cabelo preto nem um só tinham. Já o dorso lhe carregava o peito arqueado, e
o relaxamento dos músculos da face pareciam descair para o banquete dos vermes.
Desci
ao escritório da cadeia para averiguar a sentença e o crime do bravo tenente do
exército realista em 1833.
O
crime era um roubo de igreja; a sentença eram dez anos de degredo.
Sinceramente
me contristei, e fugi de falar com ele para o não obrigar a falar-me de si.
Roubo de Igreja! Quem o diria, se lhe visse a devoção com que ele entoava o
bendito em Penafiel, no templo do Deus vivo!
Milhundres,
Já pendente aos setenta anos, amava muito a mãe dum filho de três anos,
raparigaça de boa cara, e despejada de maneiras e de palavras.
Quando
as autoridades acertadamente ordenaram que aos quartos de malta não entrassem
mulheres, excepto as que visitassem seus maridos, Milhundres, com os olhos
banhados de lágrimas, passava horas encostado de peito a uma grade, donde podia
ver, no saguão da cadeia, o filho nos braços da mãe. A criança conhecia-lhe a
voz, e estendia-lhe os bracinhos, choramingando e debatendo-se no colo da
espadaúda moça.
Vi
sair Milhundres para o degredo. Enquanto, entre escolta, à porta da cadeia,
esperava os companheiros, as sentinelas consentiram-lhe que tivesse nos braços
o menino. Depois, quando lhe estavam amarrando o braço direito a outro dum
degredado, sustentava ele ainda a criancinha no braço esquerdo. Isto era
triste! “
(1)
– Refere-se a um cruzeiro manuelino do século XVI e erguia-se entre
a porta principal da Igreja Matriz e a Travessa da Matriz. Foi mandado fazer
pelo mercador João Correia e sua mulher Brites Annes, em 1534. Hoje este
cruzeiro encontra-se na Quinta da Aveleda, que o adquiriu, há longos anos, por
compra feita à Junta de Freguesia dessa época.
(2)
- A “ primeira rua” a que Camilo faz referência, é a Rua do Carmo.
Conta-se que quando D.
Pedro IV, o foi pessoalmente o visitar à prisão para o libertar, o nosso Tenente
de Milhundos lhe retorquiu que só acatava ordens de Sua Majestade El-Rei D.
Miguel.
Quando saiu da cadeia,
foi convidado por um amigo a ir jantar a casa deste em dia de festa. Entrando
na sala viu que a refeição ia ser servida em loiça azul e branca, que eram as
cores dos liberais.
- Nunca na minha vida
comerei em loiça “malhada”, puxando com força uma ponta da toalha, atirando com
tudo ao chão.
Os miguelistas chamavam
“malhados” aos liberais e estes, aos miguelistas “corcundas”.
Sofresse a amizade e a
gratidão que devia ao amigo, não sofresse o ideal de infidelidade.
Por tudo que aqui foi
relatado sobre o Tenente de Milhundos, podemos afirmar, que Penafiel também
possui o seu D. Quixote.
Fernando Oliveira - Furriel de Junho
1 Comments:
Belo trabalho, meu caro amigo Fernando Oliveira. Assim fiquei a saber que o cruzeiro antigamente existia junto à Igreja da matriz foi comprado pela Aveleda...
Um abraço
Beça Moreira
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